domingo, 29 de julho de 2007

OLHAR FLAMINGO

Tece, como Penélope, tua pele
com a fina linha do pranto,
a tocar com dedos áureos
vidas que, juntas,
se encantam.


1.
OLHAR FLAMINGO
Para Oscar Niemeyer

O mar sempre
contornado pela moldura
da janela aberta
entre o velho horizonte
e a antiga arquitetura.
Almandrade

Que arquitetura arqueou teu braço,
o abraço inútil a toda forma lassa,
véu sobre véu, se despedindo,
o horizonte ainda a mirar teu rosto,
a moldura vazada de teus traços frouxos?

Risca no papel o ritmo,
poesia de pó e giz,
concreto arco de teu concreto acerto,
poeta do aço, estilete em riste,
onde deixaste teu perfil adunco?

Nada te assombra, não és mais
novo.
Tuas janelas panorâmicas te olham:
estás próximo de teus próprios filhos.

Sou eu quem te visita e escuta.
Vem e me adorna os olhos,
tira de mim o teu segredo
– molde oco de tua vastidão antiga.

Dobra a folha do desenho
e guarda-a.

Estaremos em teu futuro.

25/11/2001 – 5h15

2.
POR QUÊ

Porque teu abandono significou tanto,
não me refiz de tua ausência.
Busco a medida de tuas palavras
medindo-as aos palmos,
como consigo medí-las.

Meus braços não te estendem
nem te alcançam.
Sou anterior a ti em tua espera.

Serás sempre o que não pôde vir.
O que ficou retido e causou
estragos ao coração alheio.

Antes de mim, talvez
esperasses sempre.

Depois já não importa.
Tudo já terá sido
a véspera de amanhã.

E não me lanço além da margem,
nem que seque o rio
e todas as suas vertentes.

No entanto, aguardo.
Bom poder esperar
à beira de algo,
uma paisagem indecifrada,
colhida de um mapa desenterrado.

Revisitarei sempre o que assisto de mim
e minhas improbabilidades.

Sou única e, por isso,
és também.

Livraria da Travessa, Travessa do Ouvidor, Rio, 29/11/2001 – 16h25

3.
HÁ EM TUDO

Há em tudo algo
que transcende espera,
tempo, afagos, coisas
que dizemos,
formas,
violetas inesperadas,
fósforos,
lumes que se acendem e apagam,
deixando-nos numa escuridão
momentânea
e tácita.

Há em nós essa hora repetida,
reiterada fome de se fazer
presente,
nascedouro de tantas palavras
tiradas do vazio
de uma solidão anterior
a tudo.

O destino nos escolhe
e nós a ele.

A vida se move, antes,
para fora, em cíclicos
movimentos
de repetidos ontens
reinaugurados apenas
para que nos reconheçamos.

30/11/2001 - 13h16

4.
ESPERApara Maria Cecília Marques, i.m.

Agora
pertences à beleza
anterior às coisas.

Estás diante
do silêncio das palavras
sem precisar dizê-las.

Pertences à manhã
mesmo indivisa
como se existisses
antes.

Pois nada é
possível,
até o fim da espera.

13/12/2001 - 2h58

5.
ETERNIDADE
Toda palavra é uma semente.
Raduan Nassar, in Lavoura Arcaica


Em um instante, a eternidade.
O corpo, a sombra na parede,
as brancas cortinas esvoaçantes,
a mesa posta de ontem
e o silêncio da manhã em tudo.

A janela entrecorta a paisagem,
fresta verde,
céu claro e turvo,
pequenas flores amarelas
pontilhando as margens.

Os sentidos em vertigem,
seca casca de minha memória,
mãos sobre o charco atemporal.

O fogo, lamparina,
tecido de luz sôfrega,
na verdade colhida do fruto amargo.

Diante de nós, o insabido.
E o tempo pousa farto,
exíguo, escasso,
pão raro das horas mortas.

Em um instante, a eternidade parte.

23/12/2001 – 12h28

6.
DESEJO

Assim te desejo como
um segredo
um improviso
um balé dançado dentro do ouvido.

Essa valsa no escuro,
só nós dois sem ninguém olhando,
quantos olhos não nos olham por dentro?

Que desfrute
que vastidão
que dor que alento
nessa dança consentida?
Mais querida.

Mais queridos um do outro.

Fogo sobre água,
fogo sobre terra,
fogo sobre mim.

29/05/2001 - 02:08

7.
FELIZ DIA DE SANTO ANTÔNIO
A Antonio Amaral

Feliz dia de Santo Antônio.
Feliz dia do santo dos namorados.
Aqueles impossíveis
aqueles desesperados
aqueles que Deus pensou
que não fossem se encontrar
e que só o santo pode ajudar.

Aqueles que pelo menos sabem
que mesmo que não se vejam
estarão sempre sob a proteção do santo
que acorre os que acordam cedo.

Viva Santo Antônio
vivam os namorados
os impossíveis
os possíveis
os enternecidos
os vigilantes amorosos
de toda a vida.

13/06/2001 - 9h41

8.
ALI BABÁ

Ali Babá
& 40 ninfas
a servi-lo.

Sheik
de Agadir a
Adis-a-beba
ondulantes
dunas
de prazer.

Tutankamon
Agamenon
Nefertiti
Nefertari
suas tumbas
recendem ao olor
dos incensos.

Haréns
jardins
paraísos afins
paisagens contínuas
peregrinos em pêlo
caravanas seguindo além.

14/06/2001 - 10h47

9.
LUA EM ÁRIES

A lua está em Áries.
Antes estava em Peixes.
Da calma à turbulência num segundo,
do encontro em profundas águas do lago
ao agitar das ondas e vagas.
A lua transita seus signos
e por ela transitamos nós
peixes perdidos em estampidos
flechas boreais
línguas de fogo a restaurar a fala
arquetípica flora bucal.

Sorvo as espumas de teu amado frescor.

14/06/2001 - 15h10

10.
BLOOMSDAY HOJE
A Sérgio Gerônimo e Gladis Lacerda

Acordei com ventos de Portugal no rosto.
A brisa era marinha
e com certeza havia caravelas dentro.
Penso em manhãs de Lisboa,
onde o Castelo de São Jorge pousa além
de uma imaginária lenda de tempos ainda presentes.
A Noiva Branca, a Lisboa mourisca,
uma cidade em meio à névoa
a cobri-la inteira.

E vejo que o dia é único,
16 de junho, Bloomsday,
um dia mergulhado em Irish mists,
um dia acalentado e brando,
cheio de respostas e perguntas
que ainda suscitam vontades.
Yes! Por que não?

Somos breves dentro do amanhecer de sempre.
Toda vez, os mesmos cascos e quilhas a cortar o mar.
E, por isso, ainda podemos abrir as janelas
sobre esse oceano puro e avançar
sobre todas as águas,
todas as marés,
todos os movimentos líquidos do nosso corpo.

Vem e avança.
Nunca será tarde demais
e querer depende de opção.
Nunca será tão tarde que não possa vir a ser
mesmo que por último.

O amor não conhece arrependimento.

16/06/2001 - 13h26

11.
CALENDÁRIO DA PEDRA
A Denise Stocklos

És pedra
e sobre teu corpo
inscrevem-se as horas
as horas vivas sobre o calendário gasto
os dias passando à revelia dos anos
- pedra angular fundando o Homem.

Em teus gestos
giram as órbitas dos olhos
preciso movimento de falas.
Falas por mim, eu que me vejo muda,
o corpo-bomba contra o planalto.

Atira-me de cima deste monte
que te lança
na direção dos céus.

15/07/2001 - 23h50

12.
VASLAV

Bailarino do inefável,
incorruptível fauno de Mallarmé,
Baco estaria perdido sem ti.
Debussy verteu todas suas notas
para fazer-te dançar.
Tua loucura é o âmago de Deus.
Tuas uvas, as fontes inesgotáveis
do torrencial vinho que jorra.
Aninha-te e acalma tua alma.
Deita-te sob as parreiras
e sente o frescor e a maciez da terra.
Mãos de lavrador,
és o salto perfeito da rosa.
És cúmplice,
Príncipe Azul de Scheherazade.
As mil e uma noites em teus braços
não teriam fim.
Petrouschka, o sonho de realidade,
o eterno rodopio da Terra
em torno de seu próprio eixo.
Fome de água e céu.
Sussurra teu nome e despe
a capa de rei.
Sagra tua primavera.

29/07/2001 - 20h19

13.
INÉDITO

a vida é inédita.
vivemos cada dia de cada vez,
único.
reinventamos o possível
e deixamos o resto por conta
do acaso.
o acaso desinventa nossas invenções.
mistura novamente os ingredientes
e nos apresenta novas fórmulas
de ser.
tentamos ser o mais parecido
conosco mesmos
e sempre nos estranhamos.
quem somos agora?
a vida é inédita
e aprendemos continuamente
a ser outros
sendo quem somos.

5/09/2001 – 10h58

14.
NOITE

Que posso eu fazer
senão beber-te os olhos
enquanto a noite
não cessa de crescer?
Eugénio de Andrade

É noite no Rio
e o mundo dorme um pouco,
descansa em seu feriado
sem Carnaval.
É noite
e uns versos me chegam para me lembrar
que a noite se estende além das praias,
beirais de silêncio,
marulhos incessantes,
pérolas aquosas se desmanchando na areia.
É noite mais uma vez
e eu reconheço o instante antes que passe.
“A noite não cessa de crescer”
e a manhã ainda é um futuro que não alcançamos.
São horizontes que se aproximam
e se tocam dos dois lados da esfera.
É noite, enquanto ainda escuto as vozes
de todos que se calam.
Espero que ressurjam os pássaros
que anoiteceram, no primeiro momento da aurora.
Avança o tempo como um pêndulo,
indo e vindo sem parar,
oscilando no mesmo ponto, imutável.
Avançam os ponteiros cravados no meio do relógio,
girando em torno de si mesmos, inabaláveis,
deixando um rastro para trás.
Hoje é um dia que se repete,
calendário retornado, dia enumerado,
retrógrado, reinventado.
Ainda é noite.
Amanhã, outra vez se refaz.
Cresce a noite em mim,
enquanto espero as horas anônimas
se apoderarem do tempo
que gira incessantemente sobre si mesmo:
crescem meus olhos no silêncio
que se desfaz em sono.

8/09/2001 - 00h30

15.
REPETIDO GESTO

É pela repetição
que se aprende.
Aprendemos a fazer melhor
o que já fazíamos antes.
Mas além da repetição,
há a intenção.
O amor que depositamos
em cada gesto.
Por isso as repetições
são únicas.
Cada uma, nova.
À medida que cresce
a intensidade,
a repetição muda
– fica só o gesto –
porém o resto,
que vai por dentro,
é outro.

9/09/2001 - 12h0516

A SORTE DO ABISMO
A Álvaro de Sá, em memória

Morrem os poetas
quando os poemas se partem
ao meio.
Fende-se a poesia
em mais pedaços
espalhando-se sobre nós
o pólen de sua semeadura.
Morrem os poetas
mas não morre a poesia.
Brota em nós o novo,
o bálsamo do olvido,
a tentativa de levar o fardo
adiante.
Guardamos a poesia
em nós
como um santuário,
um legado de luzes,
a sorte de permanecer
além da espera,
além das vozes,
além da vida.
A morte do poeta
não espanta
– só precipita o que restou
em nós
da poesia.

15/09/2001 - 22h14

17.
SÃO FRANCISCO

São Francisco dos animais,
quem somos nós
que não nos reconhecemos?

São Francisco, orai por nós,
tão pecadores e tão esquecidos.

São Francisco, quem sois vós,
que sublimou sua existência
e lavou da alma toda dúvida,
toda dor e encontrou o perdão?

Perdoai-nos, Francisco,
que não sabemos o que fazemos.

Perdoai-nos, pelo Pai, que espera
que saibamos um dia a amar
como vós.

Rio, 4/10/2001 – 13h30

18.
DESTINATÁRIO DO POEMA

Um poema é para quem o ama,
mais do que para quem foi escrito.

22/10/2001 – 16h12

19.
VOLTAS

Todo amor é perigoso,
porque nos desafia.
E nos tornamos desafio,
porque andamos à margem de tudo
o que não é amor.

24/12/2001 – 17h59

20.
LIBERTA POESIA
a Pedro Lage

Sento-me para ouvir Murilo.
E seu odor de primavera me invade.
Suas faces são múltiplas, todas a mirar o caos.
Encontro-o, olhos crispados,
a indagar-se a poesia que o inunda.
Seu rosto em Portinari mira o infinito.
Seu olhar de abismo, universal,
lábios firmes, circunspetos.
Perplexos.
Seus tons de azul e cinza,
casas brancas e ocres misturadas,
espalham-se pela cidade antiga,
tua voz não mais falada, mas ouvida.
Ouço Murilo falando.
Séqüito de poemas, manhãs eólicas,
fósforos acesos na penumbra,
umbrais de esperas,
oco das mãos preenchido.

Falam contigo Nery, Tristão,
Jorge de Lima.
Em nenhum tempo foste ausente.
És ainda Murilo, o profundo,
o humano, apocalíptico,
místico e transcendental.
És o Murilo dos homens,
o que habita a vida e a morte,
o flagelado, o esquecido, o relembrado.
Tudo em ti encerra o efêmero.
E no efêmero de tudo, és permanente.
Volta teus olhos para mim
e me deixa entrar em teu mundo escarlate.
O poeta retratado e belo.
Como são belos teus olhos cerrados.
E, contra a paisagem,
Guignard te aproxima de nós.
Poesia irrepetível, poeta cósmico e ancestral,
habitas com os Serafins os sonhos
das cabeças dos homens.
Amo em ti o que procuro.
A treva e a luz que se misturam.
Lodo e água para os mais belos lírios.
Tuas mãos cavas,
a vida póstuma e larga,
tudo feito de esgueiramento e palavra,
tudo posto,
tudo deixado ao acaso.

Ouço Murilo e ele me fala.
Sou pequena em suas mãos de gigante.
O gigantesco ser dos poemas translúcidos,
diamante em meio à tormenta.

Tudo cabe na lembrança do agora.
Te temos com certezas e horas.
Antes foste o coro dos anjos,
hoje a memória de tua voz.
Irmão impossível,
entrego-me a ti e escondo meu rosto.
Tua voz celestial me toma nos braços
e me faz entender o que nunca houve.
Tua música é um contentamento estranho.
As folhas bailam inaudíveis.
Sem mais manhãs, sem tragédias tardias,
aguardamos mais uma vez o fim do mundo.

Rio, 31 de outubro de 2001 – 12h31

21.
TEMOR DE MÃOS

Movemo-nos sobre o insólito.
Passos sobre o chão irreal.
Mal pousamos as mãos
sobre as coisas e elas nos fogem.
Pesadelo e febre do irrealizado.
Estar sendo antes de sê-lo.
Incorruptível sede de sentir-se novo.
Bailam as sombras, luz entrecortada,
corpos longilíneos e encurvados,
interiores de vestes dobradas.
Páginas de livros, números, signos,
palavras que se avolumam
no vermelho intenso de uma tarde.
O céu escurece sobre o mundo.
O mundo é oco e não nos ouvimos.
Partem-se as centelhas, os cascos,
os feixes de horas.
Ramos de meus dedos sobre a névoa de tuas mãos.
Pólen disseminado e seco.
Úmida floresta.
Fruto rompendo a casca da espera.

25/12/2001 – 15h38

22.
DERRADEIROS ANOS

Serão derradeiros anos,
derradeiros dias de se deixar passar
a vida como cálice
entornado de tua própria mão.

Serão as vidas as melhores lembranças,
tudo que fomos e continuamos sendo,
nós e o que restou de nossos rostos,
os olhos buscando olhares
e a vida contorcida que levamos.

Malabaristas acrobatas circenses,
faunos sílfides bacantes,
Eros revisita suas carnes
e deita sobre o leito a fala dupla.

Desdobra-te e deixa-te embarcar
em seus meandros,
navegar por mares que te embalam,
casca de noz sobre o oceano,
vertigem avessa e transposta,
teu ser despido dos véus
de tuas derrotas.

28/12/2001 – 21h25